Querida Léa,
Mais uma vez obrigado pela leitura, pelo esforço crítico,
que só enriquece o meu texto.
Como sempre em literatura, pelo menos naquela que nos
interessa, há muitas maneiras de chegarmos no livro. Tu levantas algumas, todas
válidas. Calvino é um dos meus santos. É verdade que a gente pode sentir ecos
de “Cidades invisíveis” nas descrições que faço da cidade. Do “Se um
viajante...”, que adoro, penso mais na coisa da repetição, do retorno a um
ponto de partida. Mas são coisas que me vêm agora, a partir da tua observação.
A verdade é que a gente escreve sempre com os “santos”, essa gente toda que faz
parte da nossa formação continuada. Eles
estão sempre presentes em tudo o que a gente escreve. Já “Amores difíceis”, eu
não li.
Por outro lado, uma intertextualidade intencional que, eu
sei e sabia desde o início, para aflorar dependeria da revelação do autor (como
faço agora para ti) ou da leitura de um cinéfilo atento: trata-se de Bariera,
um filme de 67 do polonês Jerzy Skolimowsky. É o título do filme que o
personagem Robert Bernard assiste no final do livro e que lhe permite uma
espécie de insight. A descrição que lá está corresponde exatamente às cenas do
filme. Foi um filme que me marcou muito porque, quando assisti, praticamente
não li as legendas, elas me pareceram totalmente acessórias, até prejudiciais.
É um filme tão plástico, imagético, tão bonito nisso, que as palavras ali,
pareceu-me, estragavam. Mais tarde, li uma entrevista do Skolimowski onde ele
de certa forma confirmava a impressão que eu tive, ele dizia que queria fazer
um filme que não sendo mudo, prescindisse das palavras. Quando vi o filme eu já
estava me encaminhando mais para o fim da escrita do livro, mas achei que ele
tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer. Ou seja, não era a trama
que me interessava (aliás nunca foi, nunca é isso o que mais me interessa num
livro), eu queria fazer algo que funcionasse por uma acumulação de cenas ou
quadros fortes esteticamente, ou momentos narrativos altos, ou imagens, sei lá,
mas pontos fortes que reunidos num todo pudesse provocar no leitor uma
experiência estética interessante e de algum impacto. “Esquece a trama”,
“esquece a historinha”, acho que é isso que o romance diz o tempo todo no
ouvido do leitor, “relaxa e vamos junto”. Foi isso que eu senti vendo o filme
(se tiveres a oportunidade de ver, eu recomendo, é belíssimo – até a pouco
estava disponível no YouTube, mas na última vez que fui checar vi que tinham
tirado). Além disso, acho que problematizo essa questão da palavra no livro,
então achei pertinente trazer esse filme pra dentro.
Voilà, te dou de bandeja uma das chaves, a do autor, que é,
como a gente sabe, apenas mais uma.
Com relação ao “trauma” (do incêndio do Grande Bazar) que tu
mencionas, ele está ali também, mas ligado à “trama”, está ali mais para
satisfazer as necessidades de coerência lógica dos seguidores de historinha. Se
um desses senhores, que em geral são furiosos, me botar a faca no peito e me
acusar de fazer coisas sem pé nem cabeça eu posso dizer que no incêndio morreu
a mãe e a irmã de Ibrahim, fato que praticamente deixa o pai dele afundado na
depressão e que, sem saber o que fazer e sem se sentir em condições de cuidar
do filho, aceita a sugestão do irmão (tio de Ibrahim) para se mudarem para o
Brasil, onde este já vivia – fato que por sua vez dá origem a este personagem
em permanente crise existencial que é o nosso heroico Ibrahim.
Já não sei se tudo isto pode ser verificado no texto, mas
creio que sim. Se tirei alguma coisa, deixei as pedrinhas necessárias ao
pessoal que tem medo de escorregar ou não gosta de pisar no lodo.
Um pouco antes de o livro sair, a organização do Prêmio
Portugal Telecom organizou um livro de entrevistas com os ganhadores ao longo
dos 10 anos de prêmio no ano passado.
Trata-se de “O livro das palavras”, pois lá eles me faziam uma pergunta
sobre o Barreira que, como eu disse, ainda não tinha saído.
Transcrevo abaixo a resposta. De repente tu tiras algo daí
para o teu blog.
E fico aqui na espera que tu escrevas a tua leitura crítica
do Barreira, e que a publique por aí.
Grande abraço do
Amilcar
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