segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Amílcar Bettega fala sobre o romance Barreira - Parte 1 de 2

Em e-mails trocados entre Léa Masina e Amílcar Bettega, o escritor falou sobre o romance Barreira e apresentou interessantes chaves de leitura. Generosamente, as correspondências foram cedidas para o blog. Para muitos, ouvir/ler um autor falar de sua obra aguça a curiosidade, auxilia no percurso da leitura. No caso de Barreira, acredito que as palavras de Bettega incitam à reflexão e expansão das infinitas possibilidades da obra.




Querida Léa,

Mais uma vez obrigado pela leitura, pelo esforço crítico, que só enriquece o meu texto.
Como sempre em literatura, pelo menos naquela que nos interessa, há muitas maneiras de chegarmos no livro. Tu levantas algumas, todas válidas. Calvino é um dos meus santos. É verdade que a gente pode sentir ecos de “Cidades invisíveis” nas descrições que faço da cidade. Do “Se um viajante...”, que adoro, penso mais na coisa da repetição, do retorno a um ponto de partida. Mas são coisas que me vêm agora, a partir da tua observação. A verdade é que a gente escreve sempre com os “santos”, essa gente toda que faz parte da nossa formação continuada.  Eles estão sempre presentes em tudo o que a gente escreve. Já “Amores difíceis”, eu não li.

Por outro lado, uma intertextualidade intencional que, eu sei e sabia desde o início, para aflorar dependeria da revelação do autor (como faço agora para ti) ou da leitura de um cinéfilo atento: trata-se de Bariera, um filme de 67 do polonês Jerzy Skolimowsky. É o título do filme que o personagem Robert Bernard assiste no final do livro e que lhe permite uma espécie de insight. A descrição que lá está corresponde exatamente às cenas do filme. Foi um filme que me marcou muito porque, quando assisti, praticamente não li as legendas, elas me pareceram totalmente acessórias, até prejudiciais. É um filme tão plástico, imagético, tão bonito nisso, que as palavras ali, pareceu-me, estragavam. Mais tarde, li uma entrevista do Skolimowski onde ele de certa forma confirmava a impressão que eu tive, ele dizia que queria fazer um filme que não sendo mudo, prescindisse das palavras. Quando vi o filme eu já estava me encaminhando mais para o fim da escrita do livro, mas achei que ele tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer. Ou seja, não era a trama que me interessava (aliás nunca foi, nunca é isso o que mais me interessa num livro), eu queria fazer algo que funcionasse por uma acumulação de cenas ou quadros fortes esteticamente, ou momentos narrativos altos, ou imagens, sei lá, mas pontos fortes que reunidos num todo pudesse provocar no leitor uma experiência estética interessante e de algum impacto. “Esquece a trama”, “esquece a historinha”, acho que é isso que o romance diz o tempo todo no ouvido do leitor, “relaxa e vamos junto”. Foi isso que eu senti vendo o filme (se tiveres a oportunidade de ver, eu recomendo, é belíssimo – até a pouco estava disponível no YouTube, mas na última vez que fui checar vi que tinham tirado). Além disso, acho que problematizo essa questão da palavra no livro, então achei pertinente trazer esse filme pra dentro.

Voilà, te dou de bandeja uma das chaves, a do autor, que é, como a gente sabe, apenas mais uma.

Com relação ao “trauma” (do incêndio do Grande Bazar) que tu mencionas, ele está ali também, mas ligado à “trama”, está ali mais para satisfazer as necessidades de coerência lógica dos seguidores de historinha. Se um desses senhores, que em geral são furiosos, me botar a faca no peito e me acusar de fazer coisas sem pé nem cabeça eu posso dizer que no incêndio morreu a mãe e a irmã de Ibrahim, fato que praticamente deixa o pai dele afundado na depressão e que, sem saber o que fazer e sem se sentir em condições de cuidar do filho, aceita a sugestão do irmão (tio de Ibrahim) para se mudarem para o Brasil, onde este já vivia – fato que por sua vez dá origem a este personagem em permanente crise existencial que é o nosso heroico Ibrahim.

Já não sei se tudo isto pode ser verificado no texto, mas creio que sim. Se tirei alguma coisa, deixei as pedrinhas necessárias ao pessoal que tem medo de escorregar ou não gosta de pisar no lodo. 

Um pouco antes de o livro sair, a organização do Prêmio Portugal Telecom organizou um livro de entrevistas com os ganhadores ao longo dos 10 anos de prêmio no ano passado.  Trata-se de “O livro das palavras”, pois lá eles me faziam uma pergunta sobre o Barreira que, como eu disse, ainda não tinha saído.

Transcrevo abaixo a resposta. De repente tu tiras algo daí para o teu blog.

E fico aqui na espera que tu escrevas a tua leitura crítica do Barreira, e que a publique por aí.
Grande abraço do


Amilcar

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